Por Glayson A. Bencke
Se você já observou aves na Lagoa do Peixe ou no litoral do Rio Grande do Sul, quase certamente avistou talha-mares descansando tranquilamente na praia ou voando rente às águas calmas da margem de alguma lagoa ou ao longo da costa. O que você talvez não tenha percebido é que alguns desses talha-mares são um pouco diferentes.
Na América do Sul há duas subespécies de talha-mar (Rynchops niger). Uma habita os grandes rios, lagos e planícies inundáveis do leste e sudeste do continente, desde a costa da Região Nordeste até o Paraguai, Argentina e Uruguai, passando pelo Brasil Central e Pantanal. A outra é encontrada nos grandes sistemas fluviais da Bacia Amazônica e também na costa da Colômbia, oeste do Equador e Bolívia. Ambas formam concentrações em regiões costeiras durante o período não reprodutivo, tal como acontece no nosso litoral.
A subespécie do leste e sudeste da América do Sul (intercedens), mais comum no Rio Grande do Sul, tem a parte de baixo da asa quase toda branca e a parte de cima escura com uma larga barra branca na borda posterior. Já a subespécie amazônica (cinerascens) distingue-se principalmente pelo lado inferior das asas mais escuro, uniformemente marrom-acinzentado, e pela barra branca sobre a asa nitidamente mais estreita (veja a prancha). Em geral, também tem a cauda escura e não branca com uma faixa longitudinal marrom no centro como em intercedens, mas esta característica pode variar sazonalmente nesta última subespécie e não é tão segura para a diagnose.
Enquanto a forma intercedens realiza apenas deslocamentos de curta e média extensão em direção à costa, as populações amazônicas são forçadas a emigrar na época das cheias e dispersam-se por longas distâncias tanto ao norte quanto ao sul de suas áreas de reprodução. Um estudo recente1 envolvendo o rastreamento via satélite de indivíduos capturados na Amazônia ocidental revelou que essas aves são capazes de cruzar os Andes e dispersar-se ao longo da costa do Pacífico até o Chile, ou migrar em direção sudeste até o rio Paraguai, por onde facilmente podem alcançar a costa do Atlântico. O fato é que este padrão migratório é totalmente atípico entre as nossas aves: enquanto várias espécies que se reproduzem aqui migram para os trópicos (inclusive a Amazônia) durante o inverno, o talha-mar parece ser o único caso de uma espécie tropical que se reproduz na Região Amazônica e migra para latitudes temperadas no período não reprodutivo.
Outro estudo recente2, ainda não publicado, mostra que há intenso fluxo gênico entre as subespécies de talha-mar, o que indica que elas não estão reprodutivamente isoladas. O mais interessante é que são as próprias cheias dos rios que conectam as populações e fazem com que as distribuições das duas subespécies se sobreponham durante parte do ano. Alguns indivíduos com características intermediárias fotografados no estado, em geral tendo o lado dorsal mais similar a cinerascens e o lado ventral a intercedens, podem bem ser evidência desse intercruzamento.
Não sabemos ainda com que frequência ou em que época do ano os talha-mares amazônicos visitam nosso estado. Os poucos registros conhecidos até agora indicam que eles estão por aqui pelo menos entre novembro e abril, período que coincide com as agregações de talha-mares na costa do estado. Portanto, fique atento em suas próximas observações. Você pode ajudar a esclarecer estas dúvidas e a revelar outros mistérios sobre a migração das nossas aves!
1 Davenport, L. C., K. S. Goodenough, T. Haugaasen (2016) Birds of two oceans? Trans-Andean and divergent migration of Black Skimmers (Rynchops niger cinerascens) from the Peruvian Amazon. PLoS ONE 11(1): e0144994. doi:10.1371/journal.pone.0144994
2 Gouvêa, A. C. (2018) Taxonomia e biogeografia de Rynchops niger (Rynchopinae) e Phaetusa simplex (Sterninae) (Aves, Charadriiformes): utilizando a morfologia e marcadores moleculares para investigar a estrutura populacional e o papel dos rios na evolução e migração de aves aquáticas. Tese de Doutorado. São Paulo: Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo.